.

fepri

.

EM BUSCA DE DEUS: DO HOMEM PRIMITIVO AO LIVRO DOS ESPÍRITOS

.

                                                           “Eu não inventei nada. Eu redescobri.”

                                                           Auguste Rodin

.

Imagine uma realidade em que contar a verdade seja a única alternativa plausível. A franqueza singular dos habitantes de uma cidade incapaz de mentir, de usar eufemismos ou entender o conceito de ficção marcam a dialética do universo do filme “A invenção da mentira”, um lugar onde o conceito de “deus” sequer faz sentido. Uma das cenas emblemáticas se dá quando o  protagonista, Mark Bellison, ao descobrir a possibilidade da mentira diante da morte iminente de sua avó, narra de maneira comovente, a história da existência de um ser superior, da negação ao vazio e da passagem dos que morrem para um mundo alegre e de paz. A narrativa de Bellison, além de impactar os médicos e demais presentes à cena, passa a imprimir outra dinâmica no filme: a inalienável necessidade de Deus.

Bellisson representa o arquétipo primevo, a memória primordial da consciência e o desejo de transcendência do ser humano. A instância do sagrado e a presença do transcendente, marcada, sobretudo nos fenômenos da natureza, permitiram a instauração da vocalidade humana, através de gritos e grunhidos dos primeiros hominídeos diante de raios, trovões, lampejos de luz e de fogo,  como se estivessem a clamar pela manifestação do divino. O homem descobre a voz para chamar a si a presença de Deus. E essa descoberta da voz, a seu turno, faz com que a espécie humana transite do estágio animal quadrúpede para bípede, desenvolvendo e acomodando os novos órgãos vocais com a verticalidade, e dessa forma, a possibilidade de articulação de sons cada vez mais definidos. A consciência de Deus é a marca inerente à caracterização humana diante de outras formas de vida existentes. Deus abre a voz do homem. O homem começa a busca por Deus.

            O ciclo evolutivo avança e ganha mais espaço quando o ser humano concebe através dos primeiros rudimentos artísticos das pinturas rupestres a lei de adoração. O homem passa a cultuar e representar o transcendente, e essa descoberta coincide com a formação das primeiras hordas, o que seria a sombra imperfeita dos primeiros núcleos familiares. Os tímidos avanços tecnológicos com o ferramental rudimentar tencionavam a assimilação da lei de progresso e da lei do trabalho. Instalava-se a partir dai uma nova percepção de mundo com a antevisão dos processos civilizatórios. Na medida em que o cérebro humano amadurecia o conceito de Deus, os estágios da evolução e a introjeção das leis naturais se faziam notórias. Trabalhar e evoluir traziam paulatinamente diferenças nas relações sociais, nos meios de produção, na apreensão do mundo e na aproximação com o sagrado. O que significa dizer que a busca do ser humano pelo sagrado implicou nas trilhas do progresso.

.

artep

.

Entretanto, na solidão do imanente, nas primeiras experiências enquanto espírito primitivo encarnado, o ser humano descobriu nesses contatos iniciais com o globo terrestre o impulso do instinto e, consequentemente a lei de conservação. Desta forma, as leis de conservação e reprodução empreendiam as amarras necessárias para que o homem primitivo ganhasse posteriormente contornos mais delicados, mais sensíveis à caminhada evolutiva. Todavia, na mesma medida em que o homem se deparou com a conservação na pulsão de Eros, experimentou Tanatos, na sua forma mais animalizada através da destruição. Essa ambivalência instintiva e impulsiva resultou nas formas de aniquilamento, dos primeiros homicídios, e também, na dominação das espécies animais para trabalho ou para consumo diante da escassez de outros tipos de alimento.

            O fenômeno da morte para o homem primitivo desvelou o desamparo primordial e um sentimento de orfandade e impotência, interferindo sobremaneira na relação com o transcendente. As teorias antropológicas a partir das pinturas rupestres e outras formas de arte remontam o dilema do ser humano diante da morte e das primeiras noções atávicas sobre a vida espiritual e sobre o conceito de Deus. 

            O quadro das leis naturais e morais se esboçavam diante dos primeiros homens e mulheres na medida em que os contornos de um modelo de sociedade se faziam mais concretos. A noção de Deus e a relação com o sagrado tornavam-se uma premissa real e indispensável à formação de grupos sociais a partir da extinção paulatina do incesto, da parricídio e da degeneração dos povos.

            Passadas inúmeras páginas dessa epopeia, o homem deságua na Antiguidade, período em que todas as leis divinas estão perfeitamente delineadas e o conceito do sagrado totalmente aclimatado nas comunidades da época, embora sob o viés do politeísmo. A lei natural, de trabalho, progresso,  conservação, reprodução e sociedade já conviviam com as noções elementares da lei de igualdade, liberdade e justiça que o pensamento filosófico das escolas socráticas e platônicas debatiam. As esperanças, consolações, penas e gozos futuros ganhavam notoriedade nas discussões dos areópagos e nas consultas às pitonisas.  Deus já caminhava entre os homens. Mas esse era apenas o princípio de uma busca.

.

polit

.

Os deuses egípcios, sumérios, gregos e romanos permitiram que a mentalidade humana gradativamente encontrasse fôlego para novas incursões transcendentes e continuasse nas sendas do progresso, articulando a grande mudança de paradigma: a concepção do deus-uno. Nessa movência, as manifestações do judaísmo problematizavam o monoteísmo nacionalista, o deus de Israel, trazendo para a história das religiões o que se tem de mais tangível acerca de Deus e de sua natureza. O conceito do religare já estava perfeitamente intrínseco a psyqué humana, e com isso, religião, vida social e política já começavam a se entrelaçar num tênue bordado de tensões e embates mundanos.

            Entretanto, a busca por Deus é permanente entre os povos da Antiguidade, sobretudo entre os Hebreus. Os anciãos hebreus revisavam as leis divinas e a relação com a mentalidade da época, surgindo a noção do messianismo: a chegada de Deus na forma de homem. À procura de um messias, Israel instaurou uma visão monolítica, autocrática e perversa acerca do transcendente, precisando da intervenção divina para alteração dos rumos do hebraísmo vigente.  Nessa perspectiva, Deus começava a circular entre os homens, através da célebre manifestação dos dez mandamentos, trazendo através da espiritualidade as noções morais primordiais para fixação das leis divinas. Davi, Salomão, Isaias, Habacuque e tantos outros enviados do Altíssimo guiavam o povo através das mensagens corretivas, enquanto os homens permaneciam na incansável busca pelo mundo espiritual.

            Todavia, é a partir de Jesus que a busca e a necessidade de Deus se corporificam em um homem. A encarnação de Jesus traz uma visão do transcendente mais humanizado. O sentimento crístico de fraternidade remonta ao conceito mais profundo da sua vinda à Terra, quando este asseverou o princípio basilar de sua mensagem: “deixo-vos a paz, a minha paz vos dou”. A mensagem de Jesus traduz a presença de Deus no cotidiano, através da incorporação da bondade, docilidade e perdão nas ações e pela afetividade dos comportamentos ressignificados na caridade. Jesus representa o encontro mais sintomático do ser humano com o sagrado, a encarnação concreta da plenitude da lei de justiça, amor e caridade.

.

3re

.

Não obstante, a Idade Média e Moderna foram arrastadas por leituras equivocadas da religiosidade.  Política e religião deram o mote a um turbilhão de disputas, guerras, atrocidades e enganos em nome de uma leitura desumanizante de deus. A lacuna e a carência do transcendente marcavam os passos de uma humanidade adoecida pelo desvirtuamento constante na sua relação com o divino. A Reforma e a Contra-Reforma despontam como tentativas de resolução dos conflitos, porém fadadas às manobras dos poderes temporais. Ao que indica, as intervenções humanas diante das problemáticas religiosas são quase sempre tentativas incipientes.

            A terceira manifestação mais notória de Deus no meio dos homens acontece em 1860, em Paris, com a publicação de O Livro dos Espíritos. Deus escolheu entre tantos incrédulos cartesianos do período, Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais tarde Allan Kardec, para concretizar o encontro mais efetivo entre o ser humano e a divindade desde o advento do Cristo. Descortinando de vez o mundo espiritual, a doutrina espírita materializava a busca de Deus, a relação entre o homem e o transcendente. A partir das 21 obras compiladas por Kardec, a espiritualidade legava ao ser humano um mapa preciso e irrestrito de todas as leis naturais, morais, o caminho à perfeição maxima, a importância da caridade, a auto-análise e a vivência plena dos preceitos do evangelho. O professor Rivail revolucionou a maneira de se analisar a mediunidade, este caminho a partir do qual todos os seres humanos se colocam em conexão com o sagrado. A mediunidade deixava de ser um dom de oráculos e passava à conta de fenômeno inerente à vida humana. Explicando as origens do globo, do universo, o destino do homem após a morte e o contato entre encarnados e desencarnados, Kardec instalara uma nova página no capítulo da religiosidade, rememorando a visão amorosa de Deus, mas firmando a doutrina na fé raciocinante, ao categorizar o viés cientificista e filosófico como pedras angulares do edíficio chamado Espiritismo. O Doutrina dos Espíritos permanece como o memorial contínuo dessa procura entre o ser humano e Deus.

            A essa altura, lembramo-nos das palavras de Rodin. O homem nunca inventou Deus. Apenas o redescobriu. Mas voltemos ao filme “A invenção da mentira”. Enquanto isso, os médicos tentam reanimar a avó de Mark. Mark percebe que a morte da senhora é iminente. Deus parece estar presente naquele momento. A senhora convalece, mas Mark a conforta,” Vovó, a senhora será feliz para sempre. Eu lhe prometo isso. Mande lembranças para mamãe. Diga a mamãe que eu a amo.” A avó fecha os olhos e morre. A equipe médica se emociona, e umas das enfermeiras diz aos prantos, “irei ver minha mãe novamente quando morrer”. A trama deixa uma premissa irremediável: Deus é uma necessidade humana. Deus busca o homem na mesma medida em que o homem busca a Deus. As manifestações de Deus pelas suas leis durante os séculos se relacionam diretamente com o progresso e com a evolução da humanidade durante nossa jornada na Terra.  E essa busca continuará incessante. O filme é uma ficção, Deus não.

.

ive

.

.

madson

Madson Góis é prof. universitário de Estudos Culturais, Lusofonia e Anglofonia da UFPE, expositor espírita, membro do Centro Espírita Casa do Caminho, em Recife-PE e articulista do Blog do Bruno Tavares.

.

brunooyellowMais uma vez o meu grande amigo, amigo pessoal, a seriedade em pessoa, Madson Góis, traz-nos à guisa de reflexão, mais um artigaço! Numa verdadeira viagem antropológica pelas idades do mundo, Madson descortina a busca do ser pela fé e, de sobra, ainda nos traz a sétima arte como corolário de suas ponderações que desaguam na Terceira Revelação de Deus à humanidade: A inolvidável Doutrina Espírita.

Com Madson há uma garantia: A de aprendermos a pensar espiritamente.

Valeu, querido Madson, por mais essa pérola! 

Que Jesus o abençoe!

Bruno Tavares

.

.

O Filme Indicado por Madson

.

.

gorj

.

.

jjblog

Jesus, Fiador deste Blog

.

Francisco e Clarinha de Assis

Patronos deste Blog

fcc

.

.brunovg

carinhachn

.